MPF/PA recomenda ao Ibama que cancele o licenciamento da usina de São Luiz do Tapajós
Usina foi considerada inconstitucional pela Funai porque vai remover
aldeias indígenas, mas a Eletrobrás pressiona a autoridade ambiental
pela continuidade do projeto.
O Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente (Ibama) que cancele em definitivo o licenciamento da
usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós que foi projetada para o médio
curso do rio, na altura do município de Itaituba no Pará e alagaria
três aldeias indígenas do povo Munduruku, na Terra Indígena Sawré Muybu.
Até esse ano, por pressões do setor elétrico, a terra indígena não
tinha sido oficialmente reconhecida, mas com a publicação, em abril de
2016, do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação
(RCID), a usina é considerada oficialmente inconstitucional pela
Fundação Nacional do Índio (Funai), já que a Constituição de 1988 veda
expressamente a remoção de povos indígenas de suas terras.“Cabe ao Ibama
o cancelamento do processo de licenciamento ambiental da usina São Luiz
do Tapajós, em função de inconstitucionalidade do projeto ante a
necessidade de remoção forçada de povos indígenas, nos termos do artigo
231 da Constituição Federal”, diz a recomendação assinada pelo
procurador da República Camões Boaventura. O Ibama tem 10 dias para
responder à recomendação, que foi enviada no último dia 28 de julho.
A recomendação do MPF para cancelamento do processo de licenciamento
havia sido enviada ao Ibama no dia 30 de maio de 2016 e o prazo para
resposta se encerraria em julho, mas o órgão ambiental pediu mais prazo
para responder, alegando que recebeu manifestação da Eletrobrás
(Centrais Elétricas do Brasil S.A) que busca refutar o entendimento da
Funai. O MPF concedeu mais prazo e aproveitou para responder à
manifestação do setor elétrico. A manifestação se baseia no chamado
“marco temporal”, teoria que busca garantir a posse dos territórios
indígenas a partir de um ponto determinado na história, a promulgação da
Constituição de 1988. A tese surgiu durante o julgamento do caso Raposa
Serra do Sol, no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, mas ao
contrário do que a Eletrobrás afirma em sua manifestação, é objeto de
intensa polêmica dentro do tribunal e há várias indicações do pleno do
Supremo de que derrubará a tese.
A manifestação da Eletrobrás é um novo capítulo na longa insistência do
setor elétrico em alagar o território Sawré-Muybu com a usina de São
Luiz do Tapajós. O atraso na publicação do RCID também foi causado pela
Eletrobrás, que enviou manifestação de teor semelhante para a Funai,
numa tentativa de interferir no procedimento administrativo de
demarcação que chamou de “contestação antecipada”, ato que não está
previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Para publicar o RCID, a
Funai já refutou o entendimento da Eletrobrás, que agora tenta emplacar
as mesmas teses junto ao Ibama. Equívocos - No documento que o MPF
enviou ao Ibama, também estão refutadas as teses da Eletrobrás. Para o
MPF, “o Ibama está legalmente compelido a reconhecer a existência formal
da Terra Indígena Sawré Muybu e, consequentemente, considerar todas as
repercussões constitucionais, a começar pela vedação à remoção
compulsória dos indígenas”. O documento aponta “equívoco e má-fé das
argumentações da Eletrobrás”.
O primeiro equívoco é a presunção da Eletrobrás de que a tese do “marco
temporal” seria pacífica no STF. “Ao contrário que quer fazer parecer a
Eletrobrás, o Supremo Tribunal Federal não tem entendimento pacificado
sobre a aplicabilidade do “marco temporal”. Não poderia ser diferente. A
tese do marco temporal incorre em um equívoco jurídico, histórico e
antropológico, pois aplica um critério temporal à ocupação tradicional,
substituindo a teoria do indigenato pela teoria do fato indígena. É
evidente a contradição entre o marco temporal e o caráter originário dos
direitos territoriais indígenas”, explica o documento do MPF ao Ibama.
“Estabelecer como marco temporal a Constituição de 1988 é uma decisão
arbitrária, no sentido que seleciona aleatoriamente uma data específica
sem justificativa histórica do ponto de vista do constitucionalismo
brasileiro. A Constituição de 1988 é uma continuidade no reconhecimento
constitucional dos direitos territoriais indígenas que se iniciou com a
Constituição de 1934 e perdurou até o texto atual. Por que estabelecer
como marco 1988 e não 1934, se ambas as Constituições previam o caráter
originário dos direitos territoriais indígenas?”. Lembra o MPF.
Médio Tapajós, terra Munduruku - O segundo equívoco da Eletrobrás está
em que, mesmo se o “marco temporal” fosse considerado e a presença
indígena tivesse que ser comprovada a partir de 1988, no caso da
ocupação das terras do médio Tapajós pelos índios Munduruku, há provas
suficientes. “O documento que a Funai publicou deixa claro que o médio
Tapajós foi território dos Munduruku em diferentes períodos da história e
que Sawré Muybu é território de ocupação e de uso tradicional dos
Munduruku ao menos desde a década de 1970 em diante”, afirma o MPF.
Mais do que área de ocupação tradicional, Sawré Muybu é considerado
ponto central na cosmologia Munduruku, lugar onde foi criado o próprio
rio Tapajós e o povo Munduruku. “A TI Sawré Muybu é denominada pelos
indígenas de Daje Kapap Eypi, em português “por onde os porcos
passaram”, pois é neste território que estão situados os locais sagrados
“Fecho” e “Ilha da Montanha”, onde Karosakaybu teria criado a
humanidade e o rio Tapajós, a partir da semente de tucumã”.
Estudos arqueológicos dos pesquisadores Bruna Cigaran Rocha e Vinicius
Honorato de Oliveira apontam que a ocupação do médio Tapajós pelos
Munduruku é muito anterior ao século XX, mas que eles devem ter sido
expulsos pelo avanço da economia da borracha a partir de 1900. Há menção
na literatura de viajantes sobre a presença de aldeias Munduruku na
região no século XIX. Na década de 1970, muito após o declínio dos
seringais, o povo voltou para o médio Tapajós, de acordo com o registro
de várias famílias Munduruku (Dace, Akay, Karu, Saw) cujos antepassados
fizeram o retorno aos locais sagrados. Além de sagrado, o território
Sawré Muybu é composto de terra preta de índio, terra muito fértil que é
historicamente escolhida como local de moradia e para a qual há
inclusive uma denominação em língua Munduruku: katomb. “Em Sawre Muybu, o
cacique Juarez Saw Munduruku explicou-nos que a escolha daquele local
foi motivada pela presença de katomb, pois lugares com katomb são fartos
– trata-se de um critério que leva em conta o bem-estar das próximas
gerações que viverão ali”, informam em artigo recente os arqueólogos
Bruna Cigaran Rocha e Vinicius Honorato de Oliveira.
“Não faz o menor sentido a afirmação da Eletrobras de que os Munduruku
se fixaram apenas recentemente em Sawré Muybu e por razões de ordem
prática. Em primeiro lugar, porque os Munduruku retomaram parte dos
territórios que já ocupavam tradicionalmente até o início do século XX.
Em segundo, porque os Munduruku sempre mantiveram relações estreitas com
os territórios do médio Tapajós. Em terceiro, porque o território de
Sawré Muybu foi ocupado tradicionalmente por sucessivas famílias
munduruku, desde a segunda metade do século XX. Em quarto, porque as
famílias que tinham habitação permanente na comunidade de Pimental
utilizavam-se intensamente do território de Sawré Muybu para práticas de
suas atividades, o que indiscutivelmente caracteriza ocupação
tradicional”, diz o documento do MPF ao Ibama.
Veja íntegra do documento do MPF enviado ao Ibama
Ministério Público Federal no Pará
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