terça-feira, 2 de agosto de 2016

MPF/PA recomenda ao Ibama que cancele o licenciamento da usina de São Luiz do Tapajós

MPF/PA recomenda ao Ibama que cancele o licenciamento da usina de São Luiz do Tapajós
Usina foi considerada inconstitucional pela Funai porque vai remover aldeias indígenas, mas a Eletrobrás pressiona a autoridade ambiental pela continuidade do projeto.

O Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) que cancele em definitivo o licenciamento da usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós que foi projetada para o médio curso do rio, na altura do município de Itaituba no Pará e alagaria três aldeias indígenas do povo Munduruku, na Terra Indígena Sawré Muybu.  Até esse ano, por pressões do setor elétrico, a terra indígena não tinha sido oficialmente reconhecida, mas com a publicação, em abril de 2016, do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), a usina é considerada oficialmente inconstitucional pela Fundação Nacional do Índio (Funai), já que a Constituição de 1988 veda expressamente a remoção de povos indígenas de suas terras.“Cabe ao Ibama o cancelamento do processo de licenciamento ambiental da usina São Luiz do Tapajós, em função de inconstitucionalidade do projeto ante a necessidade de remoção forçada de povos indígenas, nos termos do artigo 231 da Constituição Federal”, diz a recomendação assinada pelo procurador da República Camões Boaventura. O Ibama tem 10 dias para responder à recomendação, que foi enviada no último dia 28 de julho.
A recomendação do MPF para cancelamento do processo de licenciamento havia sido enviada ao Ibama no dia 30 de maio de 2016 e o prazo para resposta se encerraria em julho, mas o órgão ambiental pediu  mais prazo para responder, alegando que recebeu manifestação da Eletrobrás (Centrais Elétricas do Brasil S.A) que busca refutar o entendimento da Funai. O MPF concedeu mais prazo e aproveitou para responder à manifestação do setor elétrico. A manifestação se baseia no chamado “marco temporal”, teoria que busca garantir a posse dos territórios indígenas a partir de um ponto determinado na história, a promulgação da Constituição de 1988. A tese surgiu durante o julgamento do caso Raposa Serra do Sol, no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, mas ao contrário do que a Eletrobrás afirma em sua manifestação, é objeto de intensa polêmica dentro do tribunal e há várias indicações do pleno do Supremo de que derrubará a tese. 
A manifestação da Eletrobrás é um novo capítulo na longa insistência do setor elétrico em alagar o território Sawré-Muybu com a usina de São Luiz do Tapajós. O atraso na publicação do RCID também foi causado pela Eletrobrás, que enviou manifestação de teor semelhante para a Funai, numa tentativa de interferir no procedimento administrativo de demarcação que chamou de “contestação antecipada”, ato que não está previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Para publicar o RCID, a Funai já refutou o entendimento da Eletrobrás, que agora tenta emplacar as mesmas teses junto ao Ibama. Equívocos - No documento que o MPF enviou ao Ibama, também estão refutadas as teses da Eletrobrás. Para o MPF, “o Ibama está legalmente compelido a reconhecer a existência formal da Terra Indígena Sawré Muybu e, consequentemente, considerar todas as repercussões constitucionais, a começar pela vedação à remoção compulsória dos indígenas”. O documento aponta “equívoco e má-fé das argumentações da Eletrobrás”. 
O primeiro equívoco é a presunção da Eletrobrás de que a tese do “marco temporal” seria pacífica no STF. “Ao contrário que quer fazer parecer a Eletrobrás, o Supremo Tribunal Federal não tem entendimento pacificado sobre a aplicabilidade do “marco temporal”.  Não poderia ser diferente. A tese do marco temporal incorre em um equívoco jurídico, histórico e antropológico, pois aplica um critério temporal à ocupação tradicional, substituindo a teoria do indigenato pela teoria do fato indígena. É evidente a contradição entre o marco temporal e o caráter originário dos direitos territoriais indígenas”, explica o documento do MPF ao Ibama. “Estabelecer como marco temporal a Constituição de 1988 é uma decisão arbitrária, no sentido que seleciona aleatoriamente uma data específica sem justificativa histórica do ponto de vista do constitucionalismo brasileiro. A Constituição de 1988 é uma continuidade no reconhecimento constitucional dos direitos territoriais indígenas que se iniciou com a Constituição de 1934 e perdurou até o texto atual. Por que estabelecer como marco 1988 e não 1934, se ambas as Constituições previam o caráter originário dos direitos territoriais indígenas?”. Lembra o MPF.
Médio Tapajós, terra Munduruku - O segundo equívoco da Eletrobrás está em que, mesmo se o “marco temporal” fosse considerado e a presença indígena tivesse que ser comprovada a partir de 1988, no caso da ocupação das terras do médio Tapajós pelos índios Munduruku, há provas suficientes. “O documento que a Funai publicou deixa claro que o médio Tapajós foi território dos Munduruku em diferentes períodos da história e que Sawré Muybu é território de ocupação e de uso tradicional dos Munduruku ao menos desde a década de 1970 em diante”, afirma o MPF.  Mais do que área de ocupação tradicional, Sawré Muybu é considerado ponto central na cosmologia Munduruku, lugar onde foi criado o próprio rio Tapajós e o povo Munduruku. “A TI Sawré Muybu é denominada pelos indígenas de Daje Kapap Eypi, em português “por onde os porcos passaram”, pois é neste território que estão situados os locais sagrados “Fecho” e “Ilha da Montanha”, onde Karosakaybu teria criado a humanidade e o rio Tapajós, a partir da semente de tucumã”. 
Estudos arqueológicos dos pesquisadores Bruna Cigaran Rocha e Vinicius Honorato de Oliveira apontam que a ocupação do médio Tapajós pelos Munduruku é muito anterior ao século XX, mas que eles devem ter sido expulsos pelo avanço da economia da borracha a partir de 1900. Há menção na literatura de viajantes sobre a presença de aldeias Munduruku na região no século XIX. Na década de 1970, muito após o declínio dos seringais, o povo voltou para o médio Tapajós, de acordo com o registro de várias famílias Munduruku (Dace, Akay, Karu, Saw) cujos antepassados fizeram o retorno aos locais sagrados.  Além de sagrado, o território Sawré Muybu é composto de terra preta de índio, terra muito fértil que é historicamente escolhida como local de moradia e para a qual há inclusive uma denominação em língua Munduruku: katomb. “Em Sawre Muybu, o cacique Juarez Saw Munduruku explicou-nos que a escolha daquele local foi motivada pela presença de katomb, pois lugares com katomb são fartos – trata-se de um critério que leva em conta o bem-estar das próximas gerações que viverão ali”, informam em artigo recente os arqueólogos Bruna Cigaran Rocha e Vinicius Honorato de Oliveira.
“Não faz o menor sentido a afirmação da Eletrobras de que os Munduruku se fixaram apenas recentemente em Sawré Muybu e por razões de ordem prática. Em primeiro lugar, porque os Munduruku retomaram parte dos territórios que já ocupavam tradicionalmente até o início do século XX. Em segundo, porque os Munduruku sempre mantiveram relações estreitas com os territórios do médio Tapajós. Em terceiro, porque o território de Sawré Muybu foi ocupado tradicionalmente por sucessivas famílias munduruku, desde a segunda metade do século XX. Em quarto, porque as famílias que tinham habitação permanente na comunidade de Pimental utilizavam-se intensamente do território de Sawré Muybu para práticas de suas atividades, o que indiscutivelmente caracteriza ocupação tradicional”, diz o documento do MPF ao Ibama.
Veja íntegra do documento do MPF enviado ao Ibama
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